Momento Textual # 1: Ferreira Gullar - As Peras

Resolvi criar um espaço para poder compartilhar textos de outros autores com vocês. Estes textos não ficarão restritos a poesias, e serão, na medida do possível, curtos. Podem vir acompanhados de um comentário meu ou não. 

Esta nova seção difere do já existente neste blog (entretanto copiado)  "Momento Musical" pelo fato de que não são músicas - e não debaterei aqui as semelhanças que estas duas formas de expressão apresentam. Para mim, música é música, texto é texto e vice-versa. Támbém difere do "Momento Citação" porque não são citações propriamente ditas - e aqui também me absterei de possíveis discussões.

Fica evidente portanto que, do alto da minha imensa criatividade, o nome deste espaço não poderia ser outro que não "Momento Textual" (rhá!). Espero comentários, positivos ou negativos, a respeito. Kiwi!

As Peras

As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?


Paremos a pêndula.De-
teríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.


Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Pas-
sar como eu
passo: entre nada.


O dia das peras
é o seu apodrecimento.


É tranquilo o dia
das peras? Elas
não gritam, como
o galo.


Gritar
para quê? se o canto
é apenas um arco
efêmero fora do
coração?


Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque can-
tando o galo
é sem morte.

Aos que leram até aqui, rogo mais uns momentos de atenção. Muitos poderão dizer: "Que viagem! Parece aqueles textos de literatura chatos que eu lia e era obrigado a responder o que o autor queria dizer sobre isso, blablabla, mimimi..." Eu direi que estes muitos podem até estar certos, mas eu não penso desta forma.

Para mim, "As Peras" é o cúmulo da expressão sensível desta aberração que é o homem. Porque se peras em um prato são faísca para que um só homem inspire, conforte, atormente (no bom sentido) tantas pessoas - como Ferreira Gullar conseguiu fazer - então o que não acarretará a imagem do Universo, Deus, o Bem? O homem é mesmo dotado de um brilhantismo imenso, mas que é escondido por outras questões menos importantes, entretando mais ferrenhas, que existem na mente humana. E é por isso que eu gosto tanto desta poesia.

Seria até falta de respeito eu me atrever a fazer uma "análise" ou coisas do tipo aqui. Mesmo porque eu vejo uma densidade tamanha quanto leio estas palavras, que provavelmente me perderia na verborragia de querer escancará-las. Então colocarei, a seguir, alguns pontos que me incomodam quando leio o texto (e peço desculpas pelo rearranjo das palavras, o que por si só diminui a beleza inerente ao texto):

"O relógio, sobre elas, mede a sua morte?/Paremos a pêndula. Deteríamos, assim, a morte das peras?" - A vida é medida em horas? O tempo em segundos?

"Tudo é o cansaço de si." - Por que nos cansamos tanto do nosso dia-a-dia, desejando tanto as férias que parecem não chegar nunca?

"O dia comum, dia de todos, é a distância entre as coisas." - Por que o estímulo a realizar determinadas matérias é atenuado pela dificuldade que apresentam, mesmo que o assunto seja para mim de vital importância?

Talvez tenha cometido pecados demais ao escrever as palavras acima. Ressalto que não afirmo que é isso que Ferreira Gullar quis dizer, ou que é isso que vocês devem entender ao ler o texto. Talvez pensem só: "Que descrição viajada de um prato com peras!". E talvez tenha sido este o intuito do texto. Mas os pontos acima são a minha impressão, e decidi compartilhá-la.

Abraços!

Comentários

  1. Engraçado, eu gostei do poema... mas não fiz nenhuma análise sobre ele, nem achei que era "uma descrição viajada sobre um prato de pêras"... só gostei, me soou gostoso de ler, de ouvir... acho que é o ritmo, as aliterações... gosto disso!
    Ah! E gostei do nome "momento textual"!

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  2. Pois é. Para citar novamente o Ferreira Goulart, a função da poesia é comover. Se você lê e gosta, então ela cumpriu o seu papel. Agradeço o elogio do nome!

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  3. "Por que cantando o galo é sem morte"

    "Pas-
    sar como eu
    passo: entre nada."

    Muito boa essa descrição viajada de um prato de peras. O que seria das letras sem as metáforas?

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  4. Tirar vida de pêras, ou atribuir vida aos seres humanos? Não sei se esse poema é sobre uma ou outra coisa...

    Belo poema.

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